éticas do coração

um manuscrito contendo todas as informações, estratégias e saídas para as resoluções do coração um dia me foi entregue em mãos por um agente da PalimpsestosBr, daquele jeito desajeitado e preguiçoso que reafirma a imagem dos funcionários públicos país afora. jogou em cima da minha mesa como se me entregasse um calhamaço de currículos qualquer ou uma lista telefônica amarelada, sem qualquer sugestão de que se tratava de um exemplar único e curioso, ou mesmo com a dúvida se aquele texto teria um destino coerente com a sua aparente grandeza. parece que as coisas do sentir não importam mais tanto. o título “éticas do coração” me pareceu extravagante, pretencioso, como uma tentativa filosófica de apreender os caminhos do sentimento, um quase manual do que fazer e do que não fazer. como poderia eu reescrever algo mais interessante para a sociedade contemporânea do que o que aqui já existe? logo eu, que desconheço as éticas do coração. há todo um universo de descobrimentos terríveis e indiscretos que permeiam o órgão coração, órgão aritmético, que condena todo o resto do corpo à sua vontade. então o órgão que pulsa sem parar e não tem descanso, as válvulas bombeiam sangue para que o abraço aconteça ou para que o braço se mova e pegue a caneta e então para que a voz diga “não posso mais”. e quando então o som reverbera na sala e comunica o fim, meus colegas se viram preocupados, o outro coração quebra e desfunciona, gasto toda minha água derramando pela mesa e pelos olhos enquanto as pernas parecem não mover-se mais. há toda uma ética das relações, que se estabelecem pelas éticas do coração. mas as éticas do coração são móveis, e não ditam isso ou aquilo, mas caminhos entre válvulas. deixo o camalhaço de lado, na esquina do meu olhar, para depois. outro dia será o tempo de retomar esse projeto – hoje já me ardem as pálpebras de tanto chorar.

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